O GALO ANGUSTIADO

Era uma vez um grande quintal onde reinava soberano e poderoso galo. Orgulhoso de sua função, nada acontecia no quintal sem que ele soubesse e participasse. Nada acontecia fora do seu controle rigoroso e competente. Uma galinha não botava um ovo sem que lhe fosse informado. Com sua força descomunal e coragem heroica, enfrentava qualquer perigo. Era especialmente orgulhoso de si mesmo, de suas armas poderosas, da beleza colorida de suas penas, de seu canto mavioso.

Toda manhã acordava pelo clarão do horizonte e bastava que cantasse duas ou três vezes para que o sol se elevasse para o céu. “O sol nasce pela força do meu canto”, dizia ele. “Eu pertenço à linhagem dos levantadores do sol. Antes de mim era meu pai; antes de meu pai era meu avô!”

Um dia uma jovem galinha de beleza esplendorosa veio morar em seu reinado e por ela o galo se apaixonou. A paixão correspondida culminou numa noite de amor para galo nenhum botar defeito. E foi aquele amor louco, noite adentro. Depois do amor, já de madrugada, veio o sono. Amou e dormiu profundamente.

As primeiras luzes do horizonte não o acordaram como de costume. Nem as segundas. … Para lá do meio dia, abriu os olhos sonolentos para um dia azul, de céu azul brilhante e levou um susto de quase cair. Tentou inutilmente cantar, apenas para verificar que o canto não lhe passava pelo nó apertado da garganta. – “Então não sou eu quem levanta o sol?”, comentou desolado para si mesmo. E caiu em profunda depressão. O reconhecimento de que nada havia mudado no galinheiro enquanto dormia trouxe-lhe um forte sentimento de inutilidade e um questionamento incontrolável de sua própria competência. E veio aquele aperto na garganta. A pressão no peito virou dor. A angústia se instalou definitivamente e fez com que ele pensasse que só a morte poderia solucionar tamanha miséria. “O que vão pensar de mim?”, murmurou para si mesmo, e se lembrou daquele galinho impertinente que por duas ou três vezes ousou de longe arrastar-lhe a asa. O medo lhe gelou nos ossos. Vergonha. Medo. Angústia. Andou se esgueirando pelos cantos, desolado e sem saída.

Do fundo de seu sentimento de impotência, envergonhado, humilhado, e assustado, pensou em pedir ajuda aos céus e rezou baixinho, chorando. Talvez aquele momento de humildade, único em sua vida, tenha feito com que ele se lembrasse de que, em uma árvore, lá no fundo do galinheiro, ficava o dia inteiro empoleirado um velho galo filósofo que pensava e repensava a vida do galinheiro e que costumava, com sábios conselhos, dar orientações úteis a quem o procurasse com problemas existenciais.

O velho sábio o olhou de cima de seu filosófico poleiro, quando vinha se esgueirando, tropeçando em seus próprios pés, como que se escondendo de si mesmo. E disse: “Olá! Você nem precisa dizer nada, do jeito que você está. Aposto que já você descobriu que não é você quem levanta o sol. Como foi que você se distraiu assim? Por acaso você andou se apaixonando?”. Sua voz tinha um tom meio divertido, meio provocador, ao mesmo tempo compreensivo, como se tudo fosse natural para ele. A seu convite, o galo angustiado empoleirou-se a seu lado e contou-lhe a sua história. O filósofo ouviu cada detalhe com a paciência dos pensadores. Quando o consulente já se sentia compreendido, o velho sábio fez-lhe uma longa preleção:

Antes, quando você ainda achava que até o sol se levantava pelo poder do seu canto, digamos que você estava enganado. Para definir seu problema com precisão, você tinha o que pode ser chamado de “Ilusão de Onipotência”. Então, pela mágica do amor, você descobriu o seu próprio engano, e até aí estaria ótimo, porque nenhuma vantagem existe em estar tão iludido.

Saiba você que, embora as pessoas possam iludir a si mesmas, ninguém acredita ao pé da letra nessa história de canto de galo levantar o sol. Para a maioria, isto é apenas simbólico e, por tolice ou conveniência, acreditam no que querem acreditar. “Entretanto, agora”, continuou o sábio pensador, “você está pensando que não tem mais nenhum valor, o que é de certa forma compreensível em quem baseou a vida em tão grande ilusão”. “Contudo, examinando a situação com maior profundidade, você está apenas trocando uma ilusão por outra ilusão”. O que era uma ‘Ilusão de Onipotência’ pode ser agora chamado de ‘Ilusão de Incompetência’. Aos meus olhos, continuou o sábio, nada realmente mudou. Você era, é e vai continuar sendo, um galo normal, cumpridor de sua função de gerenciar o galinheiro, de acordo com a tradição dos galináceos. Seu maior risco, continuou, é o de ficar alternando ilusões. Ontem era ‘Ilusão de Onipotência’, hoje, ‘Ilusão de Incompetência’. Amanhã você poderá voltar à Ilusão de Onipotência, para depois ter outra desilusão… Pense bem nisto: uma ilusão não pode ser solucionada por outra ilusão. A solução não está nem nas nuvens nem no fundo do poço. A solução está no chão da realidade”. Será necessário que você resolva as questões relacionadas aos sentimentos de culpa, vergonha, e medo para que possa voltar às suas funções normais. Ao longo do seu crescimento, quando você se soube destinado a ser o rei do terreiro você pensou em corresponder às expectativas de seus ancestrais. Com seu entusiasmo infantil, você decidiu cumprir com o que era esperado de você, com perfeição absoluta. Educou-se para ser o melhor, o mais competente, o mais disponível, o mais forte, o exemplo para todos. Essas decisões, que eram adequadas para a boa formação de um príncipe, não são adequadas para a vida adulta do galinheiro, tendo em vista a exagerada carga de ilusões que te descrevi. Você vai precisar pedir desculpas às pessoas pela produção de tantas ilusões. Não será necessário fazer isso diretamente: seu sentimento de culpa poderá fazer isso por você, da mesma forma que ele tem comunicado sua ilusão de onipotência! Peça ao seu sentimento de culpa para que ele peça desculpas às pessoas, em seu nome, por todo o esforço que você tem feito, ao longo da sua vida, para corresponder com perfeição a tudo o que esperam de você, porque isso produz nas pessoas a ilusão de que você nunca decepcionaria. Aproveite também para pedir desculpas a todos por você nunca ter deixado claro que você estava ainda na infância quando prometeu essas coisas e que tudo o que você queria era se sentir amado, aceito, reconhecido, admirado, considerado...

Peça também ao seu sentimento de culpa para pedir desculpas às pessoas por seu empenho em ser o melhor, o mais competente, o poderoso levantador do sol, produzindo a ilusão de que você está sempre comparando as pessoas com você, e as pessoas, umas com as outras, produzindo nas pessoas o sentimento de que a igualdade não pode existir, e a ilusão de que as pessoas precisariam parecer menos competentes para relacionarem bem com você. E também a ilusão de que você teria que ser especial para ser reconhecido.

Peça também ao seu sentimento de culpa para se desculpar com as pessoas por você, por causa desse seu grande empenho em ser sempre forte, nunca fraquejar, produzindo a ilusão de que, a qualquer demonstração de fraqueza, você não valeria mais nada e teria que se apresentar como total fracasso, quando, na verdade, tudo o que você quer é ser amado e admirado.

Para a grande mudança que você vai fazer será necessário abandonar o paradigma da ilusão de onipotência que tem orientado a sua vida desde a infância. Você sentirá a culpa de não ser onipotente, de não ser o melhor, de não estar sempre disponível para todos, de fraquejar, de dizer não, de nem sempre ser o melhor exemplo. A culpa e a angústia são sentimentos necessários a quem precisa fazer tão grande mudança e, embora sejam sentimentos desconfortáveis, não causam mal maior. Você será mais natural e mais feliz. E não se esqueça de amar, isso sim, sem limites!

Após um longo período de silêncio, o velho galo filósofo voltou-se para os seus pensamentos. Nosso herói desceu da árvore para a vida comum do galinheiro, teve um fim de tarde com a inquietação de quem ainda precisava processar a preleção. Foi dormir e entrou em seu sono profundo, mal acabou de fechar os olhos. Dormiu e sonhou em profusão, para rearranjar os aprendizados de um dia tão produtivo na vida do rei do quintal, em que teve que reconsiderar profundamente sua ilusão de onipotência, onisciência, e onipresença de semideus dos galináceos.

No dia seguinte acordou aos primeiros raios da manhã, mas não cantou de imediato, reconsiderando sua posição de levantador do sol. Mesmo com um forte sentimento de culpa, esperou que o sol aparecesse por completo antes de cantar e reconfirmou para si mesmo que o sol não precisaria do seu canto para escalar a grande montanha do infinito. Repetiu mentalmente os pedidos de desculpas ensinados pelo velho galo filósofo e, só então, a plena voz, cantou para anunciar o astro rei. Nada será como antes no grande galinheiro. Mauricio Tocafundo - IbraPNL